Sobre garçons, imperadores e bares: A vitória do Flamengo em Barranquilla

A história tem dois cenários. Na zona norte do Rio, uma hora antes do jogo começar, o clima é de apreensão. O dia todo ouvindo a imprensa falar de uma possível eliminação do Flamengo. A gente não tinha ganho o jogo de ida? Pra que cogitar eliminação então? Ah, o goleiro. É o Muralha. Não, não é o Muralha. César? César não joga tem quanto tempo? Merda, era melhor se fosse o Muralha. Já tá quase na hora do jogo.

Era dia de coroação em Barranquilla. A gente só não sabia. (Foto: Flamengo)
Na falta da possibilidade de ir ao estádio, ficar em casa não era uma opção. Se Barranquilla fica longe, o bar é na segunda esquina. Abre o armário, escolher a camisa. Essa não, essa deu azar na Libertadores. Cadê a do Adriano? Merda, tá lavando. No fundo do armário, numa cruel heresia, tava a 10 do Zico me olhando. Quando o manto chama, não tem como dizer não né? Foi ela mesmo. Casaco também, ameaçando chover, melhor não arriscar. Casaco aberto, lógico. Eu ia ser maluco de tapar a camisa de 1981? Jamais. Se eu fizer isso um dia, me interna.

Passa na casa do primeiro amigo. Chegar mais cedo no bar pra garantir o lugar de quem vem de mais longe. Surpreendentemente, o lugar não tá tão cheio, e a mesma tensão que se via na imprensa, era perceptível no ambiente. Ninguém estava muito eufórico, não parecia que o time tinha a vantagem numa semi-final de torneio continental. Na real, eu mesmo esqueci isso muitas vezes.

- Vão pedir alguma coisa já?
- Tamo esperando, tem mais três vindo aí.
- O pagamento hoje é adiantado. Quero ninguém puto e esquecendo de me pagar não.
- Relaxa, vou sair daqui feliz.
- É o que tu acha.
- Quanto vai ser o jogo então?
- Dois a zero pra eles. Não quero que vocês sejam goleados também, vão acabar quebrando o bar.

Porra, se a gente perdesse de meio a zero eu já estaria com bastante raiva. Derrota nem passava pela minha cabeça, mesmo com as já citadas condições adversas. Eu tô enganando alguém com esse discurso confiante? A real é que eu tava tão nervoso por dentro quanto aparentava estar calmo por fora. A expressão serena escondia os milhões de pensamentos, lembranças e possibilidades que passavam na minha mente naquele momento.

- Não tô confiante no César.
- E alguém aqui tá?
- Se eu fosse o Rueda eu ia com o Muralha, não ligo.
- Você é maluco, o César é bom cara.
- César não joga tem tempo.
- Goleiro não precisa jogar sempre, ele tá treinando namoral.
- Como tu sabe? Ah mano, não to confiante.

O resto do pessoal chega. Eu repito minha opinião sobre o Muralha. Ninguém precisou nem me responder. Lembra que a história tinha dois cenários? O segundo era o Estádio Metropolitano, em Barranquilla, Colômbia. E lá, a câmera focou no Muralha, no camarote do estádio. Todas as mão do bar se levantaram, como dedo médio erguido, gritando na direção da televisão. Provavelmente foi o "vai tomar no cu" mais bem coreografado que eu já vi na minha vida. César, era contestado, e mesmo assim, num paradoxo inexplicável, era unanimidade. Tensão em Barranquilla, tensão no Rio. Rolou a bola.

Primeiro tempo chato e arrastado. Só serviu pra aumentar a insegurança. (Foto: Flamengo)
E os primeiros quarenta e cinco minutos foram arrastadíssimos. O clima pesado continuava, as cornetas soavam em cada um dos vários erros cometidos durante toda a partida. César? César não era o herói que nós queríamos, mas era o salvador que nós tínhamos naquele momento. E tava servindo. Eu ouvi até gente xingando o Rueda no primeiro tempo, mas não ouvi nenhum pio negativo sobre o César. Uma senhora atrás de mim gritava "Ave César" cada vez que o goleiro defendia alguma bola. E, a verdade, é que o Flamengo sempre se deu bem com imperadores.

Se o goleiro (nem tão) novato estava mantendo a chama acessa no meio de toda a tensão na Colômbia, no bar o clima ficou totalmente pesado. Dois minutos depois do intervalo ter inicio, um barulho forte de algo se chocando contra ao chão. Uma mulher simplesmente desmaiou, caiu no chão. Muitas pessoas foram em cima, alguns curiosos, uns realmente querendo ajudar.

- Sai de perto, sai rapazeada. Deixa a garota respirar.

Um principio de discussão acontece entre os que estão tentando ajudar a mulher, um jovem defendia o jeito 'x', um senhor o jeito 'y'. O jovem, bombeiro, acabou levantando a voz, deixando o senhor bem contrariado, e reclamando por vários minutos. No fim das contas, o rapaz conseguiu recuperar minimamente a mulher, o suficiente pra por ela em um carro na direção do hospital. Óbvio que já tinham ligado pra uma ambulância antes, e é óbvio que ela chegou quando já não era mais necessária.

- Alguém tem que ir lá avisar pra ambulância que ela já tá no hospital.
- O cara ali foi até educado, eu discutia com o motorista. Porra, se fosse por eles a garota tava largada aqui.

Passada toda a confusão, o segundo tempo começou. Se tivessem contado no primeiro minuto como terminaria o jogo, o clima não teria ficado tão pesado. A mesma senhora que gritara "Ave Cesar" antes, veio falar conosco, um discurso aleatório contra bebidas alcoólicas, que eu particularmente só assentia. Minha cabeça só estava pensando no jogo, e em tudo que tinha acabado de acontecer. O garçom, tricolor, passou por mim durante um ataque do Junior e mandou: "Olha o gol vindo aí". E aí, teve aquela arrancada. E que arrancada!

Ar mais leve no Rio: Apesar de não garantir nada, gol de Vizeu deu tranquilidade pra torcida. (Foto: Flamengo)
Meio que sem querer, Vizeu deu um drible incrível, e arrancou até ficar cara-a-cara com o goleiro, onde chutou por debaixo das pernas. Bola na rede, sete do segundo tempo. Euforia no bar, leve insegurança ainda no estádio. 

- Bem que tu disse que o gol vinha né?

O Flamengo ainda errava alguns lances muito bobos, mas aquele resultado já deixava o clima mais leve pra quem assistia. César, ave César, esse fazia uma exibição sólida. Como era bom ter confiança num goleiro de novo. Tudo ia bem, e aí, aí teve o pênalti. Penalidade marcada pro time adversário. Um gol botava eles de volta no jogo, podia ser o fim de tudo, a leveza ameaçava deixar o ambiente, a tensão parecia que ia voltar mais forte ainda.

- Não vai entrar.
- O que?
- Ele vai perder. O César, o César vai agarrar.
- Não era tu que preferia o Muralha?
- Eu nunca fiquei tão feliz em estar errado. Ele vai agarrar, olha tudo que aconteceu, é o destino dele, não tem jeito. Essa bola não entra.
- Se ele agarrar, vira ídolo.

A serenidade no olhar de quem foi herói em campo. Ave César! (Foto: Flamengo)
E, no momento que o Junior Barranquilla perdeu o penal, eu perdi a minha voz. Todos perderam. Pessoas saindo do bar, desconhecidos se abraçando. Quem precisa viajar pra Colômbia? Barranquilla estava ali, nós estávamos ali. Crianças levantadas, vozes enrouquecidas, e o sentimento de euforia se estendeu até o segundo gol do Flamengo. Vizeu fechou o caixão, e botou o rubro-negro na finalíssima da Sul-Americana. Não teve ano mágico, mesmo com tantos gastos. Mas, duas máximas se confirmaram: Não se pode deixar o Flamengo chegar, e craque, o Flamengo faz em casa. Ave Vizeu, Ave Juan, Ave César. O garçom recolhe as cadeiras, expressão neutra. Aquela explosão de sentimentos pouco importara pra ele. Azar de quem não sabe o que é ser Flamengo.

- Aí, bem que tu disse!
- Disse o que?
- Que ia ser dois a zero!

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